Em meio a um mar de casas com tijolos à vista em
Paraisópolis, a maior favela da metrópole, na Zona Sul, um edifício de cinco pavimentos,
com a fachada pintada de vermelho reluzente, chama a atenção de quem passa pela
Avenida Hebe Camargo. Encravada em um ponto alto do bairro, a edificação,
erguida há cerca de um ano, possui entrada por duas ruas e conta com seis
apartamentos de 38 metros quadrados cada um. Todos dispõem de cozinha no estilo
americano e teto rebaixado com gesso. O aluguel ali sai por 650 reais. A
“cobertura”, de 87 metros quadrados e com direito a duas sacadas, custa mais
caro: 900 reais por mês. No térreo, uma loja de bugigangas ocupa um espaço de
80 metros quadrados. Todas as unidades estão alugadas, o que gera uma receita
de cerca de 6 000 reais por mês para o dono do local. “Eu queria fazer mais
alto e os pedreiros até disseram que daria para levantar mais um andar”, afirma
o comerciante Douglas de Sousa, de 30 anos, que pretende transformar- se em um
grande construtor na favela onde nasceu. Para isso, passou a cursar engenharia
civil em janeiro. “Com estudos e cálculos adequados, pretendo gastar menos
material e trabalhar para a população de baixa renda, pois um engenheiro
dificilmente quer entrar na favela.”
Em Heliópolis, a segunda maior favela da capital, um prédio
pintado de azul, com cinco andares, também destoa da paisagem habitual.
“Encaixado” no meio de dezenas de casas menores, o edifício deu trabalho aos
vizinhos quando a obra começou, há dois anos. Várias residências anexas
sofreram danos estruturais e precisaram ser reforçadas. Nos vinte apartamentos,
dispostos em corredores estreitos, a taxa de ocupação é de 100%. Ali, o valor
do aluguel é, em média, 700 reais (além dos custos de água e luz), pagos em um
carnê. Não é necessário fiador nem comprovante de renda. A lógica é simples:
não pagou, vai embora, mas fica com o nome sujo no pedaço. No fim do mês, o
lucro do empreendimento é de cerca de 14 000 reais. Procurado, o dono do
edifício não quis se pronunciar.
No mesmo bairro, a busca por imóveis para alugar ou vender
abriu caminho para pessoas dispostas a empreender. Carpinteiro de formação,
Francisco Pereira, de 39 anos, juntou-se a quatro irmãos e dois sobrinhos,
todos com conhecimentos práticos de construção civil. Nos últimos dois anos, a
família levantou quatro prédios na região, com um total de 32 apartamentos.
Cada um, de 36 metros quadrados, foi comercializado por cerca de 70 000 reais,
o que gerou uma receita bruta de mais de 2 milhões de reais. “Eu mesmo faço os
projetos, e usamos material e máquinas de primeira qualidade”, diz Pereira, que
espera finalizar em breve outras duas obras, antes de procurar mais terrenos na
área.
Do outro lado da cidade, em Perus, na Zona Norte, da união
de três irmãos saiu um prédio de cinco andares, levantado sobre um barranco e
ao lado de uma escadaria, cujos degraus recebem ininterruptamente esgoto
proveniente de casas da vizinhança. A obra durou nove anos. Na edificação
existem cinco apartamentos de 50 a 80 metros quadrados, todos alugados. O valor
da mensalidade varia de 450 a 700 reais. No terraço, uma pequena plantação de
alho faz o pedreiro Antonio Batista, de 47 anos, lembrar-se dos tempos em que
cultivava a planta em Dom Basílio, na Bahia. “Graças a Deus não precisei pagar
a pedreiros e meus irmãos me ajudaram na construção, assim como eu os ajudo”,
afirma Batista, que é casado e pai de dois filhos. A família mora em uma casa a
poucos metros do prédio. Outro auxílio para a obra foi obtido por meio da
internet. “Vi vários vídeos no YouTube e aprendi a fazer os cálculos. Sempre
trabalho com materiais em quantidade maior do que a recomendada”, diz. “Coloquei
dois caminhões carregados com 32 000 quilos na garagem para ver se o prédio
aguentava, e aguentou. Por si só o prédio não cai. Só se for por um castigo
divino”, garante.
Edificações como essa surgem aos montes também na região
metropolitana. Em Carapicuíba, um paredão com centenas de casas sobrepostas
destaca-se pelo número de canos instalados do lado de fora e que despejam
dejetos diretamente em um terreno da Companhia Paulista de Trens
Metropolitanos. A poucos quilômetros dali, no Jaraguá, na Zona Norte, uma casa
de três andares chama a atenção de quem passa pelo bairro. Construído
desafiando a lógica do “menor em cima e maior embaixo”, o prédio parece que
está de ponta-cabeça. Para baixo de um barranco, são mais quatro andares, onde
seis residências constituem um condomínio informal que impõe sérios desafios à
geometria. “Não sei como está de pé, pois os pilares são muito finos”, afirma o
engenheiro Mario Franco, que calculou mais de 2 000 projetos em São Paulo (e
pelo Brasil), como o Hotel Unique e o Instituto Tomie Ohtake. Os viadutos
Alcântara Machado e Bresser, na Zona Leste, também foram construídos por ele.
“É incrível a prefeitura permitir isso. Nas nossas casas se exige tudo”, diz
ele, referindo-se também às outras edificações mostradas nesta reportagem.
Em março, a gestão de Bruno Covas enviou à Câmara Municipal
um projeto de lei que prevê anistia a construções irregulares na cidade. A
medida, se for aprovada pelos vereadores, só vai atingir moradores que possuem
a escritura do terreno, o que não é o caso de habitantes de favelas ou regiões
distantes, como Cidade Tiradentes, na Zona Leste, apinhada de construções
verticalizadas. Para eles, a prefeitura vai criar um projeto que reconhece o
chamado direito de laje. O texto deverá ser enviado ao Legislativo ainda em
abril.
Para obter o documento de posse, o dono do imóvel precisará
seguir uma série de regras e deverá apresentar um laudo assinado por um
engenheiro ou arquiteto que atesta a segurança das edificações. “Isso pode ser
um problema para a regularização, mas só saberemos como será a adesão depois
que o texto for aprovado”, afirma o secretário municipal de Urbanismo e
Licenciamento, Fernando Chucre. A medida é vista com ressalvas por
especialistas. “Se a prefeitura não dá conta nem de regularizar terrenos,
imagine do resto”, afirma o arquiteto e urbanista Nabil Bonduki, ex-vereador
pelo PT.
Caso passe na Câmara, o texto vai beneficiar pessoas como o
comerciante Gilmar de Santana, de 46 anos. Ele transformou sua casa em uma
espécie de “extensão” do Autódromo de Interlagos. Uma simples residência,
construída sob um barranco, deu lugar vinte anos depois a um prédio de sete
andares, com várias sacadas envidraçadas, utilizadas em dias de corrida por
pessoas que não estão dispostas a pagar os preços oficiais dos ingressos. Do
local há vista parcial da pista. No auge da presença de brasileiros no
circuito, Santana chegou a faturar mais de 20 000 reais em um fim de semana. Em
2014, mandou fazer uma réplica de um carro vermelho, construída de resina.
“Agora o movimento ficou fraco e estou pensando em não fazer mais nada”,
queixa-se. Ali também funciona um ferro-velho de sua propriedade.
Para erguer o prédio, de 2 000 metros quadrados, ele diz ter
gasto mais de 2 milhões de reais, ao longo das duas décadas de empreitada. Para
finalizar a obra, que inclui acabamento interno, instalação de uma piscina no
5º pavimento e paisagismo nas varandas, serão necessários mais 600 000 reais.
“É a obra de uma vida. Quando terminar, vou ter mais de 50 anos e finalmente
poderei curtir minha casa.” A fama obtida por ele após dezenas de entrevistas
fez a prefeitura bater à sua porta, em 2015, para saber da situação das
estruturas. Um laudo assinado por um engenheiro apontou boa qualidade da
edificação
Enquanto há moradores que tentam a regularização, outros
aproveitam os vácuos na fiscalização e constroem ilegalmente na cara do poder
público. Na antiga favela do Jaguaré, na Zona Oeste, na beira da Marginal
Pinheiros, uma dezena de prédios “engoliu” as edificações regulares, construídas
pelos governos estadual e municipal a partir dos anos 90. Sem nenhuma fundação
e com cinco ou até seis andares, os predinhos apresentam sérios perigos em caso
de incêndio. “As escadas são muito íngremes e as pessoas precisam se pendurar
para descer. Pode morrer muita gente em uma fatalidade”, afirma o engenheiro
civil Antonio Fernando Berto, pesquisador do Instituto de Pesquisas
Tecnológicas (IPT). “São Paulo passa na frente desses prédios todos os dias,
mas os governantes fecham os olhos”, completa.
Fonte: Sérgio Quintella / Veja SP
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