Texto: Flávio Tartuce, Pós-Doutorando e Doutor em Direito Civil pela USP. Mestre em Direito Civil Comparado pela PUCSP.
A família é instituição básica e
essencial que significando unidade social estruturante, há de ser protegida
como um bem jurídico indivisível de seus integrantes. Importa, daí, reconhecer
que a família em si mesma representa para os seus membros, o maior patrimônio
dos que a constituem, merecendo, de consequência, a devida proteção integral.
Consabido que “a família é o
elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade
e pelo Estado” (art. 17, CCR) e que o uso da letra da Constituição reclama a
garantia da dignidade da pessoa humana a partir da família, cumpre observar que
essa diretiva tem trabalhado com dados sensíveis em percepção construtiva de
melhores aplicações, na doutrina e na jurisprudência.
Inegável que tenhamos, sempre, a
dicção constitucional como fonte dialógica diante das novas realidades
jurídicas das famílias, para a sua especial e devida proteção, conforme dispõe
o art. 226, caput, da Constituição. Mais ainda: quando programado que “o Estado
assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram...”
(art. 226, § 8º, CF), tudo implica que reconheçamos, a cada assistência
garantida, uma proteção representativa, a seu tempo e modo, de toda a unidade
familiar.
A proteção aos diversos modelos
de família significa que todas as terminologias “entidade familiar” não a
diferenciam da “família matrimonial” em seu sentido de formação, importando
inexistência de hierarquia ou de diferença de qualidades jurídicas entre as
“formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico” (01). Neste
sentido, a não hierarquização entre entidades familiares, consagrou-se com a
inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil que desequiparava, para
fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros (02).
A proteção legal por uma
igualdade de direitos e a adequada equivalência de responsabilidades dos
cônjuges quanto ao casamento, durante o casamento e em caso de dissolução do
mesmo, como preconiza o art. 17.4, da Convenção de Costa Rica e o artigo 226, §
5º da Constituição Federal, tem orientado a família como um bem jurídico
monolítico e permanente. A tanto que “em caso de dissolução, serão adotadas
disposições que assegurem a proteção necessária aos filhos, com base unicamente
no interesse e conveniência dos mesmos”.
Dentre as muitas categorias
jurídicas que envolvem a família, em seus preceitos jurídicos constitucionais,
uma das mais importantes e presenciais no cotidiano das famílias diz respeito,
por óbvio, à moradia.
No “Econômico”, (“Oικονομικός”)
do grego Xenofonte (430 a.C.-355 a.C.), uma das mais importantes obras da
Antiguidade, traduzida por Cícero, com a narrativa da vida doméstica e dos
deveres da mulher dentro do lar, apresentam-se as primeiras fontes do direito
de família (“δικαίωμα να faília”).
Ali a casa é o abrigo, é a
habitação natural, a moradia compreendida pelo seu significado de segurança e
de proteção, nos domínios da vida privada e em alcance ideal do bem estar da
família.
Pois bem. Nessa esfera de
conformidade, a casa é, sobremodo, o “locus” preciso onde a família desempenha
as suas funções. Diante de tal liame existencial, fala-se com dicção telúrica e
afetuosa da casa do avô ou da casa dos pais, servindo o “habitat” como um micro
universo mais denso de indispensável solidez.
Assim também é a casa do casal,
como sede da família nuclear, sedimentando a comunhão de vida que consolida o
lar como a sua expressão determinante, no recinto interior das relações
familiares: a mesa posta (subsistência) o sono noturno (repouso), a autoridade
parental (poder familiar) e a assistência recíproca (segurança) consagram o
ambiente de família, pelo convívio e solidariedade. É a “casa de morada” onde a
família é sediada enquanto tal.
A casa de morada ganha
importantes significantes jurídicos (i) como o lar conjugal na integridade de
sua essência; (ii) como bem de família, em prol da constituição de um
patrimônio invencível; e (iii) como o de moradia a implicar o direito real de
habitação.
Vejamos, então:
01. A casa de morada
A proteção ao melhor significado
da “casa de morada” tem ensejado uma adequada aplicação da proteção de impenhorabilidade
do bem de família, como questão de relevo em termos de direitos fundamentais.
A casa familiar serve como bem de
família, nos termos do artigo 1º da Lei nº 8.009, de 29.03.1990, para fins de
impenhorabilidade, no caso de dívidas existentes. Impenhorabilidade oponível em
qualquer processo de execução, salvo reduzidas hipóteses (art. 3º), a exemplo
dos débitos alimentares.
A tanto, antes de mais,
retenham-se duas premissas básicas:
(i) que “a Lei n. 8.009/90 não
retira o benefício do bem de família daqueles que possuem mais de um
imóvel"(03);
(ii) que “é possível considerar
impenhorável o imóvel que não é o único de propriedade da família, mas que
serve de efetiva residência (04).
Assim, a melhor leitura da Lei nº
8.009/9, feita pelo Superior Tribunal de Justiça, vem permitindo maior
dignificação da família como fonte da dignidade das pessoas que a compõem, pela
expressão valorativa do significado substancial da “casa de morada”.
De efeito, tem sido entendido
que:
(i) o imóvel utilizado como
residência é aquele onde “se estabelece uma família, centralizando suas
atividades com ânimo de permanecer em caráter definitivo”. Ou seja,
caracteriza-se por residencial e impenhorável o imóvel onde a família
estabelece a sua comunidade de vida.
(ii) o imóvel residencial é
impenhorável mesmo se a família tiver outros bens de menor valor.
(iii) não se deve levar em conta
apenas o valor dos bens para decidir sobre a penhora, sem observar se efetivamente
todos os bens são utilizados como residência, “mormente porque localizados em
cidades diversas” (05)
Nesse passo, impende considerar
nos fins de proteção da moradia e de sua impenhorabilidade, a relevância
jurídica do imóvel que serve de “efetiva residência”, pouco importando a sua
expressão financeira de menor ou de maior valor. O requisito da
indispensabilidade da fixação de residência serve, de efeito, como ditame à
correta aplicação do ar.t. 5º da Lei 8.009/1990.
No mais, a jurisprudência tem
entendido, com expressivo avanço, que o bem de família permanece íntegro, mesmo
que desfeita a união por separação ou morte de um dos cônjuges/companheiros,
perseverando a impenhorabilidade sobre o imóvel residencial e, ainda, sobre
aquel´outro imóvel que venha servir de moradia ao parceiro separado.
De efeito, a viúva, ainda que
more só, mormente na antiga casa do casal, acha-se protegida pela
impenhorabilidade do seu imóvel residencial. (STJ - REsp. nº 434856-PR).
Essa extensão alcança, aliás,
todo aquele que faça do imóvel sua residência, mesmo que seja solteiro
(famílias “singles”). De fato, a interpretação do art. 1º da Lei nº 8.009/90
tem revelado maior alcance, em seu escopo definitivo de proteção do direito à
moradia. É impenhorável, por efeito do referido dispositivo, o imóvel em que
resida, sozinho, o devedor celibatário (STJ - REsp. nº 450989-RJ).
Nesta ordem de decisões, resulta
incontroverso que “o conceito de impenhorabilidade de bem de família abrange
também o imóvel pertencente a pessoas solteiras, separadas e viúvas” (Súmula n.
364/STJ).
Interessante questão foi julgada,
em 16.06.2020, pela 3ª Turma do STJ, quando afastou a alienação fiduciária da
parte do imóvel residencial pertencente à ex-companheira do devedor, à falta de
sua autorização para a prestação da garantia. No caso em exame, a empresa
embora ciente da união estável, não se acautelou “e não exigiu a autorização de
ambos os conviventes antes da celebração do negócio".
A decisão foi no sentido de
“consolidar integralmente a propriedade do imóvel em favor da credora, mas
resguardar a meação da ex-convivente que não anuiu com o negócio jurídico, a
quem caberá a metade do produto da alienação do bem". Na hipótese, a “casa
de morada”, que fora destinada integralmente à ex-companheira do devedor, na
partilha por dissolução da união estável, veio ser consolidada em favor da
credora. (06)
Lado outro, em 26.05.2020, a 4ª
Turma do STJ, sob a relatoria do Min. Marcos Buzzi, em examinando questão
referente a julgado do tribunal “a quo” que permitira a penhora de parte do
imóvel, por dívida decorrente da meação de bens partilhados no divórcio do
casal e que entendeu aplicável ao caso, a exceção prevista no art. 3º, II, da
Lei nº 8.009/90, decidiu na forma seguinte:
(i) “O escopo da Lei nº 8.009⁄90
não é proteger o devedor contra suas dívidas, mas visa à proteção da entidade
familiar no seu conceito mais amplo, motivo pelo qual as hipóteses de exceção à
impenhorabilidade do bem de família, em virtude do seu caráter excepcional,
devem ser interpretados restritivamente”;
(ii) “inviável, também, a penhora
de fração do imóvel indivisível sob pena de desvirtuamento da proteção erigida
pela Lei nº 8.009⁄90”.
A execução objetivava a quitação
de dívida civil consistente no pagamento pela devedora, do montante atinente a
50% (cinquenta por cento) das parcelas do financiamento habitacional sobre as
quais foi reconhecida a participação⁄contribuição do exequente. (07)
02. A locação “intuito familiae”
A locação de imóvel para uso
residencial é celebrada “intuito familiae”, o que implica a citação da mulher
do locatário para, em ação de despejo, querendo, também purgar a mora.
Embora sem previsão expressa na
lei inquilinária, há de se verificar que a figura do locatário moroso, nem
sempre estará mais residindo no imóvel, por separação de fato, e em casos que
tais, caberá ao ex-cônjuge ou ex-convivente, ser chamado ao processo, para
garantir a continuidade da locação, destinada à “casa da família”, com seus
integrantes, podendo alguns deles serem filhos menores e do casal. Vezes
acontece que o locatário inadimplente é citado no endereço profissional e
queda-se inerte em desfavor da própria família.
03. O direito real de habitação
A seu turno, o instituto jurídico
do direito real de habitação sobre a “casa de morada”, assegura moradia
vitalícia ao cônjuge ou companheiro sobrevivente, sobre o imóvel em que residia
o casal, sendo daí a casa do casal perenizada enquanto um dos dois sobreviva.
A norma do artigo 1.831 do Código
Civil garante o direito de moradia, independente do regime patrimonial de bens,
“ainda que outros herdeiros passem a ter propriedade sobre o imóvel de
residência do casal, em razão da transmissão hereditária” (STJ – REsp. nº 1.273.222).
De ver que o direito do cônjuge supérstite não se extinguirá e, somente, porém,
quando da contração de novas núpcias; ou pela união estável, que mesmo que não
altere o estado civil de viuvez, equivale ao casamento (STJ - REsp 1.617.6360).
(08)
De igual latitude, o parágrafo
único do artigo 7º da Lei 9.278/1996, de 10 de maio, regulando o parágrafo 3º
do art. 226 da Constituição Federal, assegurou o direito real de habitação, ao
companheiro sobrevivente, quando desfeita a união estável pelo evento morte.
O Ministro Sidnei Benetti
sufragou a tese de que o direito da casa do casal deve ser conferido ao
cônjuge/companheiro sobrevivente, não apenas quando hajam descendentes comuns,
como também quando concorrerem filhos exclusivos do “de cujus” (STJ – REsp. nº
1.134.387). Esse direito real de habitação sobre imóvel estende-se, inclusive,
à segunda família de um falecido que tenha filhos de uma primeira união.
04. O patrimônio familiar
A morada como patrimônio familiar
tem exigido uma permanente construção jurisdicional. Assim é que outros
julgados, assumem diretivas em prestígio ao instituto jurídico protetivo da
família, a exemplo:
“É impenhorável o único imóvel
residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida
com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família”
(Súmula n. 486/STJ).
A casa do casal tem seu escopo
jurídico mais defensivo, quando também é assegurado ao cônjuge ou companheiro
que nela permaneça, em hipótese de deserção do lar pelo outro, o direito
patrimonial sobre a totalidade do bem.
De efeito, o artigo 1240-A do
Código Civil de 2002, introduzido pela Lei 12.424/2011, trata da usucapião por
abandono do lar, denominada pela doutrina como usucapião familiar. É
estabelecido o prazo de dois anos para aquisição individual por usucapião da
propriedade imóvel (casa do casal) antes dividida com ex-cônjuge ou
ex-companheiro que abandona o lar. De notar que a aquisição dominial implicando
a perda da meação decorrerá do abandono imotivado por dois anos contínuos.
Anota-se, noutra vertente, que
aquele que abandona o lar, deixando, em consequência, de prover a subsistência
da família poderá perder o direito à meação, por compensação dos débitos
alimentares continuados. Uma equação lógica de que não poderá reclamar direitos
materiais, ante o abandono material a que estiveram submetidos mulher e filhos.
Em julgado paradigma, a 8ª Câmara
Cível do TJRS negou a determinação de partilha do imóvel do casal, reconhecendo
que o abandono de casa, por tempo prolongado, pelo marido, que desviou,
inclusive, capitais da família, retira-lhe o direito de dispor da meação. O
Tribunal confrontou o valor do bem com o cálculo do sustento que foi negado à
mulher e aos filhos e reconheceu que estes seriam os credores. O imóvel foi
adjudicado à mulher.
Reflita-se, então, que a casa do
casal, desde a ideia grega de abrigo, tem o significado maior da família como
um bem jurídico a reclamar sua proteção integral.
Em suma, leis realistas, uma
doutrina de ressonância e, notadamente, julgados propulsores devem cuidar
melhor da família. A família merece cuidados.
Referências:
(01) STF. ADPF 132, Rel. Min.
Ayres Britto, j. 05.05.2011; DJE 14.10.2011
(02) STF. RE 878.694, rel. Min.
Roberto Barroso, j. 10.5. 2017, DJE 06.02.2018
(03) REsp. nº 787.165/RS, Rel.
Ministro Hélio Quaglia Barbosa, 4ª Turma, julgado em 12/6/2007, DJ 6/8/2007
(04) REsp. 435.357/SP, Rel.
Ministra Nancy Andrigui, 3ª Turma, julgado em 29/11/2002, DJ 03/02/2003;
(05) REsp. nº 1.608.415, Rel.
Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 02.08.2016
Web.:
https://scon.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201601173320&dt_publicacao=09/08/2016
(06) REsp. nº 1.608.415, Rel.
Min. Nancy Andrigui, julgado em 16.06.2020. Web:
https://ww2.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1942836&num_registro=201700661113&data=20200630&formato=PDF
(07) REsp. nº 1.862.925. Web:
https://ww2.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-eletronica-2020_258_capQuartaTurma.pdf
(08) Web: https://www.conjur.com.br/2019-out-24/união-estável-morte-conjuge-cessa-direito-habitacao
(09) TJRS-8ª. CC., Apel. Cível nº
70.008.985.236, Rel. Des. Rui Portanova
Jones Figueirêdo Alves é
desembargador decano do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Integra a Academia
Brasileira de Direito Civil, membro do Instituto Brasileiro de Direito de
Família (IBDFAM) e membro fundador do Instituto Brasileiro de Direito
Contratual (IBDCont).
Fonte: Consultor Jurídico –
Conjur – em 04.10.2020