Também conhecida pela expressão inglesa time sharing, a
multipropriedade imobiliária é uma forma de co-propriedade que amplia o
potencial de uso de bens imóveis, especialmente em áreas de veraneio e outros
recantos de repouso e férias. Mesmo já tendo sido reconhecida pela Terceira
Turma do Superior Tribunal de Justiça como direito real em julgado que
representou grande avanço nesta temática (STJ, REsp 1.546.165, rel. p/ acórdão
Min. João Otávio de Noronha, j. 24.6.2016), havia ainda grande insegurança
quanto à natureza jurídica da multipropriedade imobiliária, o que, na prática,
implicava severas dificuldades para realização dos registros e averbações
pertinentes em cartórios do Registro de Imóveis (Frederico Henrique Viegas de
Lima, Aspectos teóricos da multipropriedade no direito brasileiro, in Revista
dos Tribunais 658/40). Com isso, empreendimentos baseados na multipropriedade
imobiliária deixavam de ser realizados no Brasil ou eram realizados com base em
mecanismos de natureza contratual ou societária que não garantiam a necessária
segurança aos interessados.
A lei recém-aprovada procurou superar esse cenário de
incertezas, inserindo o novo Capítulo VII-A no Título III do Livro III da Parte
Especial do Código Civil e alterando dois artigos da Lei 6.015/73 (Lei de
Registros Publicos). O novo artigo 1.358-C do Código Civil define a
multipropriedade imobiliária como “o regime de condomínio em que cada um dos
proprietários de um mesmo imóvel é titular de uma fração de tempo, à qual
corresponde a faculdade de uso e gozo, com exclusividade, da totalidade do
imóvel, a ser exercida pelos proprietários de forma alternada.” Trata-se,
portanto, na dicção da lei, de uma forma de condomínio aplicável apenas aos
imóveis em que há uma divisão temporal no aproveitamento exclusivo da
titularidade do bem, sendo certo que cada fração de tempo de utilização do
imóvel deve ser indivisível e de, no mínimo, 7 (sete) dias “seguidos ou
intercalados” (art. 1.358-E). A fração de tempo poderá ser: (a) fixa e
determinada, correspondente ao mesmo período de cada ano (ex. primeira semana
de fevereiro, dias 10 a 16 de abril etc.); (b) flutuante, isto é, variável de
tempos em tempos, respeitada a objetividade e a transparência do procedimento
de escolha e o tratamento isonômico entre os diversos multiproprietários; ou
(c) mista, isto é, combinando características do sistema fixo e do sistema
flutuante.
Essa nova espécie de condomínio pode ser instituída, nos
termos dos novos artigos 1.358-F a 1.358-H do Código Civil, por ato inter vivos
ou por testamento, devendo ser registrado na matrícula do imóvel o período
correspondente à fração de tempo. O ato de instituição deverá regulamentar os
poderes e deveres dos multiproprietários; o número máximo de pessoas que podem
ocupar simultaneamente o imóvel; as regras de acesso do administrador
condominial ao imóvel; a criação de fundo de reserva para reposição e
manutenção do imóvel; o regime aplicável em caso de perda ou destruição; bem
como regular as multas aplicáveis aos multiproprietários em caso de
descumprimento de seus deveres (art. 1.358-G). O instrumento de instituição
poderá, ainda, prever uma fração de tempo destinada à realização de reparos
indispensáveis ao normal exercício do direito de multipropriedade, atribuindo
tal fração ao instituidor da multipropriedade ou, de forma fracionada, a cada
um dos multiproprietários (art. 1.358-N).
A Lei 13.777 ocupou-se também dos direitos e obrigações dos
multiproprietários, garantindo a cada um dos condôminos em multipropriedade o
direito de usar e gozar do imóvel, incluindo-se aí sua cessão ou locação no período
de tempo correspondente à sua própria fração de tempo. Assegurou, ainda, a cada
condômino o direito de votar e de participar das assembleias gerais do
condomínio em multipropriedade, sendo o voto proporcional à quota de fração de
tempo de cada condômino, que somente poderá votar se estiver quite com suas
obrigações (art. 1.358-I). Ainda em relação à possibilidade de votação em
assembleia geral, a lei atribui tal prerrogativa aos promitentes compradores ou
cessionários de fração de tempo (art. 1.358-K).
O multiproprietário pode, ainda, alienar e onerar sua fração
de tempo de forma livre, devendo, contudo, informar tal fato ao administrador
do condomínio em multipropriedade. A alienação da fração de tempo, destaque-se,
não depende da anuência dos demais co-proprietários; tampouco se garante aos
demais condôminos o direito de preferência, salvo disposição expressa no
instrumento de instituição da multipropriedade imobiliária (art. 1.358-L).
Em um dos vetos à lei aprovada pelo Congresso, o Presidente
da República rechaçou os §§ 3º, 4º e 5º do artigo 1.358-J, segundo os quais
cada um dos multiproprietários responderiam “na proporção de sua fração de
tempo, pelo pagamento dos tributos, contribuições condominiais e outros
encargos que incidam sobre o imóvel”, de modo que a cobrança somente seria
realizada “mediante documentos específicos e individualizados para cada
multiproprietário”, sem “solidariedade entre os diversos multiproprietários.” O
fundamento da rejeição a tais dispositivos, segundo a Presidência da República,
reside na contrariedade à solidariedade tributária fixada pelo artigo 124 do
Código Tributário Nacional. O veto, se faz algum sentido para as obrigações
tributárias, não impõe que haja solidariedade em relação às contribuições
condominiais e demais encargos, na medida em que, nos termos do artigo 1.315 do
Código Civil, “o condômino é obrigado, na proporção de sua parte, a concorrer
com as despesas de conservação ou divisão da coisa, e a suportar os ônus a que
estiver sujeita.” Trata-se de regra do condomínio geral, que se aplica também
ao condomínio em multipropriedade, espécie que é daquele gênero.
A administração da multipropriedade é atribuída pela Lei
13.777 a um administrador, definido no instrumento de instituição do condomínio
ou por meio de eleição em assembleia geral dos condôminos. Ao administrador,
além das tarefas elencadas no próprio instrumento de instituição da
multipropriedade, caberá: (a) coordenar a utilização do imóvel; (b) definir,
nos sistemas de fração temporal variável, o período de uso de cada um dos
multiproprietários; (c) manter e conservar o imóvel; (d) trocar ou substituir
equipamentos ou mobiliário; (e) elaborar orçamento anual; e (f) cobrar as
quotas de cada um dos coproprietários, pagando as despesas comuns (art. 1.358-M).
A última seção do novo capítulo inserido pela Lei 13.777 no
Código Civil destina-se ao regramento do condomínio edilício em regime de
multipropriedade, seja ele parcial (alcançando apenas algumas das unidades
autônomas) ou total, desde que previsto no documento de instituição ou por
deliberação da maioria absoluta de seus condôminos (art. 1.358-O). Nessa
hipótese, a convenção de condomínio edilício deve, entre outras disposições
especificar: (a) quais as unidades sujeitas à multipropriedade; (b) quais as
frações de tempo de cada unidade; (c) qual a forma de rateio das contribuições
condominiais, as quais serão, na ausência de previsão em sentido diverso,
proporcionais à fração de tempo; (d) quais são as despesas ordinárias de rateio
obrigatório; e (e) quais são os órgãos de administração da propriedade (art.
1.358-P).
O regimento interno do condomínio edilício em que houver
multipropriedade deverá estabelecer regras relativas, dentre outros temas, à
forma de utilização das áreas comuns pelos multiproprietários, bem como os
direitos e deveres dos administradores com relação ao acesso ao imóvel, além
das regras de convivência entre os multiproprietários e os ocupantes de
unidades autônomas não sujeitas ao regime da multipropriedade, quando se tratar
de empreendimentos mistos. A lei estabelece, ainda, que, nos condomínios
edilícios em que todas as unidades se submeterem ao regime de multipropriedade,
deverá haver um administrador profissional (art. 1.358-R), a quem caberá
administrar também unidades autônomas dos condomínios em multipropriedade.
A lei prevê, finalmente, que, no caso de inadimplemento das
despesas ordinárias e extraordinárias por parte do proprietário em
multipropriedade, caberá a adjudicação ao condomínio edilício da fração
correspondente na forma da legislação processual civil (art. 1.358S). Já no
caso de condomínios em multipropriedade voltados à locação de frações dos
tempos por seus titulares (pool hoteleiro), o inadimplente poderá ser impedido
de utilizar o imóvel até a quitação da dívida (art. 1.358-S, parágrafo único).
Questão tormentosa diz respeito à leitura do artigo 1.358-T
introduzido pela nova lei no Código Civil. Tal dispositivo determina que “o
multiproprietário somente poderá renunciar de forma translativa a seu direito
de multipropriedade em favor do condomínio edilício.” É de se notar, em
primeiro lugar, que o dispositivo elege o condomínio edilício como destinatário
exclusivo da chamada renúncia translativa. A lei, nesse particular, atribui ao
condomínio edilício (embora não se configure tecnicamente como pessoa jurídica,
mas sim como ente despersonalizado) a possibilidade de ser titular de relações
jurídicas de direito material, o que, conquanto não seja inédito em nossa ordem
jurídica, não deixa de merecer atenção. Além disso, o termo renúncia
translativa, comumente utilizado no âmbito do direito das sucessões, significa,
tecnicamente, não uma renúncia propriamente dita, mas uma transferência de
direito a outrem. Ora, se o condômino pode renunciar translativamente à multipropriedade
em favor do condomínio, não parece haver razão legítima para que não possa
fazê-lo em favor de outro condômino, especialmente diante do disposto no
parágrafo único do artigo 1.358-C, segundo o qual nem mesmo a reunião de todas
as frações de tempo em um mesmo proprietário leva à extinção da
multipropriedade.
Nesse cenário, parece mais coerente que o dispositivo tenha
trazido uma vedação à renúncia abdicativa, que, como regra geral, é admitida
nos condomínios (CC, art. 1.316), de modo a interpretar a renúncia abdicativa
nesse âmbito como renúncia translativa direcionada necessariamente ao
condomínio edilício. Trata-se, ao que tudo indica, de uma proteção à
preservação da utilidade econômica privilegiada por meio do regime do
condomínio em multipropriedade, impedindo-se que a fração de tempo da
multipropriedade fique sem titular ou que venha a ser arrecadada pelo
Município. O condomínio edilício mantém-se na propriedade da fração de tempo e
poderá garantir a continuidade da utilização do bem imóvel, sem prejuízo aos
demais coproprietários, justamente por ser responsável pela gestão do
patrimônio comum e por se tratar, em certo sentido, de uma renúncia que afeta
apenas parcialmente (no tempo) a propriedade do bem imóvel.
Há outros pontos na Lei 13.777 que mereceriam tratamento
mais claro ou específico, mas, de modo geral, pode se afirmar que,
controvérsias à parte, a nova lei merece aplausos por ter, enfim, introduzido
no direito brasileiro um regramento relativamente seguro da muiltipropriedade
imobiliária no país, superando vácuo normativo que, há anos, impedia uma forma
instigante de exploração da propriedade imobiliária, especialmente em um país
com inegável vocação para o turismo e o lazer. Caberá agora à doutrina e à
jurisprudência identificar as melhores interpretações para os dispositivos
legais que regulam a matéria, sem nunca deixar de atentar à necessidade de
concretização, também neste campo, da função social da propriedade e dos demais
valores constitucionais.
Fonte: Flávio Tartuce, Advogado, parecerista e consultor em
São Paulo
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