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sexta-feira, 17 de abril de 2009

Interesses locais ditam direção das obras do plano habitacional

Ex-secretária do Ministério das Cidades, Hermínia Maricato, afirma que pacote é imobiliário, e não habitacional

SÃO PAULO - Em entrevista ao estadao.com.br, a arquiteta Hermínia Maricato, ex-secretária-executiva do Ministério das Cidades, comentou o pacote habitacional Minha Casa, Minha Vida, lançado neste mês pelo governo Lula. Leia os principais trechos da entrevista:

Todo mundo está falando o governo não está fazendo uma política urbana, mas um pacote imobiliário. De fato, o principal objetivo desse pacote é criar emprego, e eu não acho isso demérito. Porque nós não sabemos o que vai acontecer nos próximos anos.

Nós tivemos nos anos 90 um desemprego muito forte, que trouxe uma nova realidade para as nossas metrópoles. Se você somar o ajuste fiscal, que causou esse desemprego, uma queda no PIB brasileiro, e com as políticas públicas recuando, tivemos o surgimento de uma realidade urbana que não conhecíamos, com abandono de crianças... Coisas que não existiam antes dos anos 80. (Surgiu) uma geração de jovens na periferia que desconheceram o que é emprego, o que é uma escola decente, um transporte que dê condições de circular pelas áreas da cidade que oferecem lazer e cultura, por exemplo.

Poder dos municípios

Esse problema urbano é muito importante, porém, a Constituição Federal remeteu aos municípios a questão da política urbana, e o governo federal não pode definir uma política urbana para esses novos conjuntos. Pode estabelecer condicionalidades. Há juristas que dizem que os municípios não são obrigados a seguir definições mais detalhadas, que podem até se recusar. O governo federal pode definir diretrizes, mas diretrizes são aquela coisa vaga...

Outra coisa que pode acontecer: o governo federal faz uma condicionalidade e a Caixa Econômica (Federal) faz uma normativa dizendo que o conjunto tem de estar a menos de 200 metros de transporte público, de uma escola de ensino fundamental, de um posto de saúde... Mas a Caixa não tem condições operacionais de pegar uma normativa dessas e aprovar cada município do País.

Então, está se cobrando do governo federal algo que não é da competência constitucional dele. Se fosse, seria um imbróglio burocrático imenso. O BNH (extinto Banco Nacional da Habitação) fazia isso, mas os erros foram muitos. Essa é a primeira questão: vai ter problema de localização e de oferta de terra urbanizada? Com certeza.

Estatuto da Cidade

Nós temos uma legislação de política fundiária muito avançada no Brasil, calcada na função social da propriedade. Essa legislação tenderia a diminuir os lucros especulativos, rentistas, que não são ligados à produção, mas ela não foi aplicada. O Estatuto da Cidade é de 2001, já existe portanto há oito anos e é uma lei festejada no mundo inteiro. Porém, o que você vê nas cidades é o pobre excluído das zonas urbanizadas, com água, esgoto, transporte, comércio, hospitais próximos... Se a gente aplicasse a regra da função social, diminuiria o lucro especulativo. Mas, no Brasil, o patrimonialismo, essa coisa do lucro com imóvel está na alma da formação da sociedade. O Estatuto da Cidade por enquanto não decolou.

Teríamos várias formas de aplicação (da função social). Mas o conceito do que é uma propriedade que não cumpre a função social foi remetido para os planos diretores. Esse foi o truque da Constituição e do Estatuto das Cidades. Não é fácil a aplicação. Para aplicar, é preciso dizer no Plano Diretor quando é que uma propriedade não cumpre a função social. Por exemplo, um grande terreno em qualquer bairro da semi-periferia, que tem uma guarita e que está sendo usado como estacionamento. Esse terreno cumpre a função social? Isso é o que tem de ser definido no Plano Diretor.

O que as prefeituras estão fazendo? Vou dar o exemplo de São Paulo. Não regulamentou a definição de imóveis que não cumprem a função social, e mandou para lei complementar algumas medidas, mas não fez a legislação complementar. Estão tornando letra morta. E por quê? Porque há um problema secular no Brasil, com a terra no campo e com terra e imóveis na cidade, e há também uma ligação do Executivo e câmaras municipais com o capital imobiliário. Há muitos prefeitos que foram loteadores e construtores em cidades de porte médio.

Pobres sob o tapete

A cidade então é reservada para o mercado, e o mercado que nós temos é de luxo. No período de baixo crescimento do País, ele construiu para no máximo 30% da população brasileira. E para onde foram os pobres? Nas metrópoles do Brasil inteiro, eles foram para a periferia distante, claro, e para áreas ambientalmente frágeis. É uma correlação cruel. Aqui em São Paulo há quase 2 milhões de pessoas em áreas de proteção de mananciais. Há outro órgão que fala em 1,5 milhão... Por aí você vê que não interessa quantificar a população pobre.

Chega a haver divergência de 50% e até 100% entre estudos. O IBGE dá 12% da população morando em favela e um estudo em Porto Alegre há dez anos mostrou que eram 22%. A cidade no Brasil é um tema muito recente na agenda nacional, é pouco conhecida porque tem uma elite que se interessa muito pouco pela racionalização do uso do fundo público e do uso e da ocupação do solo. Porque isso faz fortuna.

Mananciais

Então você tem uma tradição de empurrar pobre para debaixo do tapete. No Rio eles vão para os morros, principalmente na Zona Norte, eles estão nas dunas, nos mangues... Não estou dizendo que a população rica dos loteamentos fechados não agrida a natureza. Trabalhei muito com o Ministério Público sobre esses loteamentos fechados. Mas o fato é que áreas valorizadas pelo mercado imobiliário são áreas em que os pobres não entram. Áreas que têm cinco níveis de legislação protegendo, como é a mata no sul da capital paulista, é ali que sobrou para a população pobre. Então desmatam, ocupam, poluem a represa que fornece a água que nós bebemos. (O Poder Público) deixa isso acontecer e - o que é pior - depois a prefeitura vai lá e criminaliza as pessoas, como vem fazendo agora. Como se 2 milhões de pessoas fossem criminosos.

Na cidade brasileira, a ocupação ilegal é regra, mais do que exceção, porque o problema fundiário, o acesso a um pedaço de terra, não foi equacionado. A elite se apropriou da terra que é legal e adequada para o mercado.

Se esse pacote conseguir produzir para a população pobre, majoritariamente, vai ser a primeira vez na história do País. O BNH produziu conjuntos habitacionais fora das cidades. Bem fora... Mas priorizou a classe média. Porém, vai enfrentar essa questão fundiário-imobiliária: como é que vamos por os pobres dentro da cidade. E essa é uma questão municipal. Não tem como escapar disso, não tem como culpar o governo federal se surgir uma Cidade de Deus.

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