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sexta-feira, 17 de abril de 2009

Baixa renda fica fora do plano habitacional

Para arquiteta, mercado vai aproveitar para atender faixa de 5 a 10 salários, deixando mais necessitados de lado

SÃO PAULO - Em entrevista ao estadao.com.br, a arquiteta Hermínia Maricato, ex-secretária-executiva do Ministério das Cidades, comentou o pacote habitacional Minha Casa, Minha Vida, lançado neste mês pelo governo Lula. Leia os principais trechos da entrevista:

Nós temos um mercado que nunca se interessou pela renda média (eu não vou dizer nem baixa), é um capital imobiliário que trabalha com uma produtividade questionável. Quando fiz meu doutorado, acompanhei as discussões das regras do BNH para o Sistema Financeiro da Habitação. O mercado fazia pressão sobre o governo sempre para ampliar para cima as camadas a terem acesso a esses recursos.

O pacote habitacional tem subsídio. De zero a três salários é maior, claro. Mas veja: no ano passado, foram construídas 130 mil unidades; há no pacote uma previsão de construção de 300 mil unidades entre cinco e dez salários. Então, o mercado vai usar toda a sua capacidade para construir isso. A taxa de lucro é muito melhor, é mais atrativa.

Como eu fui secretária na gestão da (Luíza) Erundina, eu sei o tempo que se leva arrumando a terra, elaborando um projeto, licitando o projeto e começando a obra. Fizemos um cálculo no Ministério das Cidades e constatamos que, na área do saneamento isso leva pelo menos 1 ano e meio, porque saneamento envolve grandes obras e tem muito a ver com impacto ambiental. É muito difícil para uma prefeitura, que não tem equipe, botar isso em funcionamento.

Governo aposta no mercado

Então eu sinto, nas entrelinhas, que o governo apostou no mercado, que o mercado seria mais ágil. Eu vi uma entrevista do presidente Acebip (Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança) dizendo que o mercado já tem projetos prontos, e tem terra. As empresas que abriram capital na Bolsa compraram muita terra e ficaram descapitalizadas para construir. Então esse pacote é bem-vindo.

Muitas dessas empresas, como a Camargo Corrêa, a Cyrela, a Gafisa, por exemplo, têm um braço do que elas chamam de moradia econômica. Mas o pessoal chama de mercado econômico a faixa de R$ 200 mil, o que é hilário - para não dizer outra coisa. Tive uma vez uma conversa com um diretor de banco e ele disse "nós fazemos moradia para baixa renda", e citou lá os R$ 200 mil. Eu disse a ele que não estão chegando nem nos 35% da população. O mercado trabalha com um país de ficção na cabeça.

Mas essas grandes empresas, como a Camargo Correa, de construção pesada, quando veem dinheiro grande para moradia tentam entrar no mercado de edificações. Isso não é ruim. São empresas produtoras que vão produzir em massa. Já começaram. O problema dessas empresas é que elas vão ficar numa faixa que estava fora do mercado, mas não na faixa que compõe a maior parte do déficit habitacional. 85% do déficit habitacional brasileiro está na faixa de zero a três salários mínimos. Esse mercado que falou que ajudou a fazer o pacote, que tem projetos, não é o nosso mercado prioritário.

Clientelismo piora

(O mercado) é um lado do poder sobre as cidades. Do outro lado está o clientelismo, são os donos de bairros. Como é que você fazer planejamento urbano num país onde é preciso dizer que quem vai definir o que vai ter nesse bairro não é o vereador que é dono do bairro, e sim o Plano Diretor? Nós até temos alguns planos diretores bons, como o de Santo André. Mas a maior parte dos planos está ou não sendo aplicada ou mudada, como é o caso do plano de São Paulo.

Temos mudanças, trazidas pelo processo de globalização, e temos persistência. Acho que nos últimos dez anos há um recrudescimento do clientelismo urbano. Com a ditadura isso havia sido abrandado. E eu não estou dizendo que isso foi bom, não; a ditadura traz uma tradição de planejamento tecnocrático, que também ignorou os pobres. Também não foi bom. Ela deu um upgrade no avanço do capital imobiliário, na indústria da construção. Foi impressionante nos anos 1970.

Oportunidade de disputa

Se você fala 'meu negócio é criar emprego, não é resolver o problema da habitação nesse momento', você está correto. Embora o emprego na construção não seja dos melhores, se você olhar os direitos, a jornada, a rotatividade etc. Mas se eu falo que, além de criar emprego, quero mudar esse quadro de desigualdade extrema nas cidades, diminuir o crescimento e o adensamento das favelas (que está se tornando algo patológico), quero diminuir a ocupação de áreas não apropriadas para urbanização... Aí é que eu digo aos que criticam o pacote, por ser "imobiliário", por não levar em consideração a política urbana: acho esse pacote uma oportunidade de disputa para as forças sociais que querem mudar a história das cidades brasileiras.

Acho que esta é a grande chance, já que não conseguimos instituir até agora o Estatuto das Cidades. Estamos sofrendo uma derrota, nós que queremos cidades mais democráticas, menos segregadas, menos violentas... Porque essa coisa de juntar pobre longe de tudo e adensar, tipo Cidade de Deus, dá naquilo que deu.

Não repetir o BNH

Agora, nós sempre dissemos que faltava subsídio. Temos subsídio agora, e é hora de irmos para a luta. Vamos ver se historicamente nós conseguimos exigir que o mercado aprenda a trabalhar com a baixa renda e, em segundo lugar, que o mercado e as prefeituras que insiram a população de baixa renda nas cidades. Senão, a crítica vai ser a mesmíssima que eram feitas ao BNH (extinto Banco Nacional da Habitação): gerou emprego pra chuchu, construiu muito, mas favoreceu a classe média e aprofundou as desigualdades.

Quando eu estudava o BNH, eu tinha um colega que pagava de prestação um valor mais baixo do que o preço do carnê. A classe média foi ultra-favorecida, e ela foi apoio da ditadura, aliás. Eu não gostaria de ver isso novamente, mas parece que estou vendo de novo uma história. O que o BNH trouxe? Foi muita moradia para a população pobre? Sim, foi mais do que se verificou nas décadas de 1980 e 1990, quando as favelas explodiram de vez (a taxa de crescimento foi de 7,4% na década de 80 e quase 5% na década de 90, se eu não me engano). Então, o BNH produziu alguma coisa para a baixa renda, porém, produziu muita segregação e subsidiou a classe média.

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