“Você paga mais impostos, emprega mais pessoas, dá facilidades de conforto, dá a economia de tempo. Você entra num shopping center e tem compras, alimentação, lazer, até um simples bate-papo. Na minha cabeça, ele deveria cobrar uma contrapartida.”
A declaração é de Luiz Fernando Pinto Veiga, presidente da Associação Brasileira de Shoppings Centers, dada aos repórteres Carolina Matos e Evandro Spinelli, da Folha de S. Paulo, ao ser questionado se as exigências viárias e ambientais impostas aos shoppings pelos órgãos públicos são equivalentes ao investimento realizado por eles.
O discurso é semelhante ao do dono da fábrica que diz que faz um favor aos operários quando abre uma unidade nova, como se ele não precisasse da força de trabalho de pessoas para ganhar dinheiro. Com argumentos bem colocados, subverte-se a vida da forma como desejarmos. Ou seja, os donos de shopping fazem uma caridade aos paulistanos ao instalarem locais onde se oferece, sem nenhum interesse, realidade virtual.
Ou, como dizem meus amigos de Alphaville, ao criticarem os condomínios fechados em que cresceram: “bolhas”. Um ambiente agradável, asséptico, sem pobreza, dor ou feiúra, com temperatura estável e luz na quantidade certa para possibilitar aquilo que fazemos de melhor: comprar.
Como já disse aqui, os produtos que consumimos são estilos de vida. Do que somos. Do que gostaríamos de ser. Do que deveríamos ser – não em nossa opinião, necessariamente, mas de uma construção do que é bom e do que é ruim. Construção essa que vem, não raras vezes, de cima para baixo. A busca pela felicidade passa cada vez mais pelo ato de comprar. E a satisfação está disponível desde que você tenha um cartão de crédito ou débito com saldo. Trabalhamos tanto que, não raro, esquecemos como demonstrar afeto de forma sincera ou simplesmente não temos tempo para isso. Então, a fim de compensar nosso silêncio ou nossa ausência, nos tornando compradores e doadores de símbolos daquilo que não conseguiremos transmitir por vivência direta.
Os shoppings oferecem um caminho fácil para tornar isso possível. Eles não são os culpados, mas fazem parte do processo. Enquanto isso, vamos feito gado, comprando bovinamente, sem questionar o que aquilo representa. Ou suas consequências para a cidade. Que vão além do aumento no trânsito ou de vagas de estacionamento.
Você que mora fora de São Paulo talvez não entende a paixão avassaladora que nós, paulistanos, temos com o shopping center. Matérias e mais matérias já foram produzidas sobre pessoas que não viveriam sem eles – não porque deles dependem para tirar o sustento, mas por terem escolhido suas luzes, vitrines, cinemas, restaurantes e academias como pano de fundo para suas existências. Gostando ou não gostando, oferecem a comodidade necessária para o nosso ritmo e fazem parte da nossa vida.
E o melhor é que a sensação de falsa segurança, no estilo “me engana que eu gosto”, oferece a garantia de que nada vai acontecer com você se estiver lá dentro. Da mesma forma que cercas eletrificadas mentem sobre a proteção de casas, que carros blindados mentem sobre a proteção de famílias, que a presença de uma arma de fogo mente quando promete afastar qualquer risco real. Mas nos esquecemos que ninguém vive apenas em suas casas, as pessoas – em algum momento – saem de seus carros e armas de fogo mudam de mãos tão rápido quanto uma cancela se abaixa atrás do veículo no estacionamento do shopping ou uma porta-automática se fecha. Daí em diante, a realidade virtual se desliga.
Em outras palavras, sentimento falso, pois não são cercas, chapas de aço ou armas que garantem segurança aos moradores de uma metrópole como São Paulo. É bom como efeito placebo, para se enganar, mas, mais dia ou menos dia, a bomba estoura.
São Paulo tem mais de 11 milhões de habitantes, mas apenas uns poucos são efetivamente cidadãos, com acesso a todos os seus direitos previsto em lei. Lembra a antiga Atenas, com uma democracia para uns poucos iluminados e o trabalho pesado para o grosso da sociedade, composta de escravos. Enquanto parte de nós aproveitam uma vidinha “segura” dentro de bons shoppings, clubes, restaurantes, boates e residenciais, outros penam para sobreviver e ser reconhecidos como gente. Para cada assassinato em Moema, 130 são mortos no Grajaú. Só que a morte de uma jovem em Moema causa mais impacto na mídia do que a de 130 na periferia, como já aconteceu em outros tempos. Tem vida que vale mais que outras, por causa do dinheiro.
Nesse contexto, e mesmo como muleta retórica, é engraçado os shoppings sugerirem uma contrapartida da cidade por serviços prestados. Pois, mesmo involuntariamente, ajudam a evitar que as pessoas desencastelem-se e tenham a possibilidade de reconhecer no outro um semelhante e procurar um diálogo que construa uma cidade melhor e não destrua pontes. Qual o custo disso para a cidade?
Há riscos de assaltos? Sempre há e eles vão acontecer. Mas devemos ter em mente que há atitudes que pioram o quadro. Ou a cidade será boa para todos ou a aristocracia que sobrar após o caos não conseguirá aproveitar sua pax paulistana em shoppings. Ignorar a realidade não faz ela deixar de existir.
Fonte: Leonardo Sakamoto
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.
A declaração é de Luiz Fernando Pinto Veiga, presidente da Associação Brasileira de Shoppings Centers, dada aos repórteres Carolina Matos e Evandro Spinelli, da Folha de S. Paulo, ao ser questionado se as exigências viárias e ambientais impostas aos shoppings pelos órgãos públicos são equivalentes ao investimento realizado por eles.
O discurso é semelhante ao do dono da fábrica que diz que faz um favor aos operários quando abre uma unidade nova, como se ele não precisasse da força de trabalho de pessoas para ganhar dinheiro. Com argumentos bem colocados, subverte-se a vida da forma como desejarmos. Ou seja, os donos de shopping fazem uma caridade aos paulistanos ao instalarem locais onde se oferece, sem nenhum interesse, realidade virtual.
Ou, como dizem meus amigos de Alphaville, ao criticarem os condomínios fechados em que cresceram: “bolhas”. Um ambiente agradável, asséptico, sem pobreza, dor ou feiúra, com temperatura estável e luz na quantidade certa para possibilitar aquilo que fazemos de melhor: comprar.
Como já disse aqui, os produtos que consumimos são estilos de vida. Do que somos. Do que gostaríamos de ser. Do que deveríamos ser – não em nossa opinião, necessariamente, mas de uma construção do que é bom e do que é ruim. Construção essa que vem, não raras vezes, de cima para baixo. A busca pela felicidade passa cada vez mais pelo ato de comprar. E a satisfação está disponível desde que você tenha um cartão de crédito ou débito com saldo. Trabalhamos tanto que, não raro, esquecemos como demonstrar afeto de forma sincera ou simplesmente não temos tempo para isso. Então, a fim de compensar nosso silêncio ou nossa ausência, nos tornando compradores e doadores de símbolos daquilo que não conseguiremos transmitir por vivência direta.
Os shoppings oferecem um caminho fácil para tornar isso possível. Eles não são os culpados, mas fazem parte do processo. Enquanto isso, vamos feito gado, comprando bovinamente, sem questionar o que aquilo representa. Ou suas consequências para a cidade. Que vão além do aumento no trânsito ou de vagas de estacionamento.
Você que mora fora de São Paulo talvez não entende a paixão avassaladora que nós, paulistanos, temos com o shopping center. Matérias e mais matérias já foram produzidas sobre pessoas que não viveriam sem eles – não porque deles dependem para tirar o sustento, mas por terem escolhido suas luzes, vitrines, cinemas, restaurantes e academias como pano de fundo para suas existências. Gostando ou não gostando, oferecem a comodidade necessária para o nosso ritmo e fazem parte da nossa vida.
E o melhor é que a sensação de falsa segurança, no estilo “me engana que eu gosto”, oferece a garantia de que nada vai acontecer com você se estiver lá dentro. Da mesma forma que cercas eletrificadas mentem sobre a proteção de casas, que carros blindados mentem sobre a proteção de famílias, que a presença de uma arma de fogo mente quando promete afastar qualquer risco real. Mas nos esquecemos que ninguém vive apenas em suas casas, as pessoas – em algum momento – saem de seus carros e armas de fogo mudam de mãos tão rápido quanto uma cancela se abaixa atrás do veículo no estacionamento do shopping ou uma porta-automática se fecha. Daí em diante, a realidade virtual se desliga.
Em outras palavras, sentimento falso, pois não são cercas, chapas de aço ou armas que garantem segurança aos moradores de uma metrópole como São Paulo. É bom como efeito placebo, para se enganar, mas, mais dia ou menos dia, a bomba estoura.
São Paulo tem mais de 11 milhões de habitantes, mas apenas uns poucos são efetivamente cidadãos, com acesso a todos os seus direitos previsto em lei. Lembra a antiga Atenas, com uma democracia para uns poucos iluminados e o trabalho pesado para o grosso da sociedade, composta de escravos. Enquanto parte de nós aproveitam uma vidinha “segura” dentro de bons shoppings, clubes, restaurantes, boates e residenciais, outros penam para sobreviver e ser reconhecidos como gente. Para cada assassinato em Moema, 130 são mortos no Grajaú. Só que a morte de uma jovem em Moema causa mais impacto na mídia do que a de 130 na periferia, como já aconteceu em outros tempos. Tem vida que vale mais que outras, por causa do dinheiro.
Nesse contexto, e mesmo como muleta retórica, é engraçado os shoppings sugerirem uma contrapartida da cidade por serviços prestados. Pois, mesmo involuntariamente, ajudam a evitar que as pessoas desencastelem-se e tenham a possibilidade de reconhecer no outro um semelhante e procurar um diálogo que construa uma cidade melhor e não destrua pontes. Qual o custo disso para a cidade?
Há riscos de assaltos? Sempre há e eles vão acontecer. Mas devemos ter em mente que há atitudes que pioram o quadro. Ou a cidade será boa para todos ou a aristocracia que sobrar após o caos não conseguirá aproveitar sua pax paulistana em shoppings. Ignorar a realidade não faz ela deixar de existir.
Fonte: Leonardo Sakamoto
Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política. Cobriu conflitos armados e o desrespeito aos direitos humanos em Timor Leste, Angola e no Paquistão. Professor de Jornalismo na PUC-SP, é coordenador da ONG Repórter Brasil e seu representante na Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo.
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