O condomínio de fato é uma realidade social na qual há uma
união de moradores com objetivos afins e que buscam privatizar de modo relativo
áreas públicas com o objetivo de suprir deficiências na prestação de serviço
público nas áreas da segurança, lazer e limpeza, dentre outras. Para atingir
tal desiderato, os interessados se cotizam a fim de que tais necessidades sejam
supridas mediante a contribuição de associados. Não se trata de condomínio de
direito pelo motivo óbvio de que a área comum não é de titularidade dos
condôminos, mas sim um bem público de uso comum do povo.
Sob o ponto de vista da dogmática clássica tal figura teria
muita dificuldade de obter reconhecimento judicial. Podemos apontar o óbice da
inexistência de posse sobre bem público de uso comum do povo, na inviabilidade
de se obstar o direito de ir e vir de qualquer cidadão nos espaços públicos do
condomínio de fato, a característica da taxatividade que é tão marcante no
âmbito dos direitos reais, sem falar na dificuldade de se impor a contribuição,
uma vez que somente a lei pode instituir tributos e taxas e, como cediço, a
Constituição assegura ao cidadão o direito de não se associar nem permanecer
associado (art. 5º, XX).
Contudo, o fato é que há várias décadas essa realidade se
tornou frequente, notadamente, nos grandes centros urbanos. A tal ponto que
mesmo o operador do direito mais atento tem dificuldades fáticas em identificar
diante do caso concreto se a situação apresentada como condomínio de casas é um
loteamento antigo ou mesmo uma rua sem saída ou se é um condomínio de direito.
Enquanto ainda existia grande controvérsia doutrinária sobre
o tema, mas a jurisprudência[1] pendia para a admissão do condomínio de fato
fundada, principalmente, na vedação ao enriquecimento sem causa daqueles que
não contribuem, mas tem o seu patrimônio valorizado, o Órgão Especial do TJRJ
em 2005 aprovou com o significativo quórum de 17 votos a 1 o verbete nº 79[2]
com os seguintes dizeres: “Em respeito ao princípio que veda o enriquecimento
sem causa, as associações de moradores podem exigir dos não associados, em
igualdade de condições com os associados, que concorram para o custeio dos
serviços por elas efetivamente prestados e que sejam do interesse comum dos
moradores da localidade.”
A despeito de continuarmos concordando com o conteúdo do
aludido verbete, desde que esteja efetivamente provada a prestação de serviços
de natureza indivisível como segurança, limpeza e lazer em razão da vedação ao
enriquecimento sem causa e, na maioria das vezes, na própria vedação ao
procedimento contraditório (venire contra factum proprium),[3] o fato é que a
partir de decisões dos tribunais superiores, a jurisprudência predominante nos
tribunais estaduais tem sido no sentido de que é incabível a cobrança em razão
da liberdade de associação prevista no artigo 5o, XX, da Constituição Federal.
Em 20/9/2011, no julgamento do Recurso Extraordinário no
432106/RJ,[4] tendo como relator o Ministro Marco Aurélio de Mello, a Primeira
Turma do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, considerou indevida a
cobrança por ofensa ao princípio da legalidade e da liberdade de associação
(Informativo no 641/STF).
Essa decisão da excelsa Corte parece ter pacificado também a
orientação do Superior Tribunal de Justiça que no julgamento dos Embargos de
Divergência no 444.931/SP,[5] também já acenara no sentido da impossibilidade
de se exigir pagamento de cotas de manutenção no chamado condomínio de fato.
Contudo, a polêmica àquela época ainda era muito grande nessa Corte, tendo
votado vencido os Ministros Carlos Alberto Direito e Fernando Gonçalves, cujo
trecho de seu voto esclarece bem o cerne da controvérsia: “O proprietário de
unidade em loteamento está obrigado a concorrer no rateio das despesas de
melhoramentos que beneficiam a todos, ainda que não faça parte da associação,
dado que, além de usufruir das benfeitorias comuns e dos serviços prestados e
custeados pelos vizinhos, tem valorizado o seu patrimônio”.
Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a vedação
à obrigatoriedade do pagamento da cota no condomínio de fato já se encontra
pacificada. Isso porque acabou sendo definida, por maioria, vencidos os
Ministros Moura Ribeiro e Ricardo Villas Bôas Cueva, pela técnica do julgamento
de recursos repetitivos, no qual restou fixada a seguinte tese: “As taxas de
manutenção criadas por associações de moradores não obrigam os não associados
ou que a elas não anuíram”. (REsp 1.280871/SP, Segunda Seção, Rel. Min. Marco
Buzzi, julg. em 11/03/2015).
Agora, resta saber se na dinâmica da vida real, os
condomínios de fato deixaram de existir por força da encimada determinação
judicial. A resposta é negativa. Não chegou a nosso conhecimento a extinção de
nenhum condomínio de fato após a fixação da aludida tese pelo colendo Superior
Tribunal de Justiça. O que houve foi um lamentável fomento da inadimplência,
levando a que os associados adimplentes paguem mais do que devem.
Entretanto, com a inclusão do artigo 36-A (Lei 13.465/2017)
da lei 6766/79 que cuida dos loteamentos urbanos restou positivado
expressamente o condomínio de fato, prescrevendo a referida norma ser possível
juridicamente a existência de associações de proprietários de imóveis em
loteamentos ou assemelhados com o propósito de administração, conservação,
manutenção e disciplina da utilização e convivência dos moradores. No parágrafo
único do citado artigo é afirmado com muita clareza que a administração dos
imóveis nos moldes associativos sujeita os titulares de imóveis à normatização
e à disciplina constantes de seus atos constitutivos, cotizando-se na forma
desses atos para suportar a consecução dos seus objetivos. Na mesma senda, a
lei 13.465/17 incluiu o § 8º no artigo 2º da lei 6766/79 o que denominou de
loteamento de acesso controlado, sendo aquele em que o acesso será
“regulamentado por ato do poder público Municipal, sendo vedado o impedimento
de acesso a pedestres ou a condutores de veículos, não residentes, devidamente
identificados ou cadastrados.”
Com efeito, os atuais artigos 2º, § 8º e 36-A, da lei 6766/79
com a redação dada pela lei 13.465, de 11 de julho de 2017 parecem não deixar
dúvidas acerca do retorno ao ordenamento jurídico do condomínio de fato com
todas as suas implicações jurídicas, atingindo aqueles que participaram de sua
formação, assim como outros adquirentes que adquiriram a sua unidade depois da
instituição do condomínio de fato.
O Supremo Tribunal Federal irá reconhecer a
inconstitucionalidade do novel regramento? Cremos que não, pois não se está
afirmando que a pessoa é obrigada a associar-se, mas sim que o interesse da
coletividade no tocante à funcionalização da propriedade deve prevalecer e que
não é lícito o enriquecimento sem causa (art. 884, CC) que se dará com o gozo
das benesses condominiais sem a devida contraprestação. Eventuais abusos na
cobrança como, por exemplo, inexistência de contraprestação, hão de ser
identificadas pelos tribunais estaduais a quem compete aferir no mundo dos
fatos a seriedade ou não dos condomínios de fato.
É por isso que aproveitamos para lembrar o notável artista
Nelson Sargento que falava do samba algo que hoje se aplica também ao
condomínio de fato, pois este também “agoniza, mas não morre.”. No caso do
samba é fundamental que assim seja pelo seu valor artístico e cultural ao passo
que com relação ao condomínio de fato o ideal é que um dia inexista tal figura
pela assunção efetiva por parte do Poder Público de suas atribuições
constitucionais, as quais a sociedade faz jus em contrapartida à intensa
tributação que sofre.
Concluindo, entendemos, com a devida vênia das opiniões em
contrário, não ser conveniente nem oportuno negar, por ora, a juridicidade do
condomínio de fato.
[1] Recurso especial. Condomínio atípico. Associação de
moradores. Cobrança de despesas comuns. Possibilidade. Precedentes. O
proprietário de lote integrante de gleba urbanizada, cujos moradores
constituíram associação para prestação de serviços comuns, deve contribuir com
o valor que corresponde ao rateio das despesas daí decorrentes, pois não é
adequado continue usufruindo dos benefícios sociais sem a devida
contraprestação. Precedentes. Recurso conhecido e provido. (STJ, Terceira
Turma, Resp nº 538.833/RJ, Rel. Min. Castro Filho, julg. em 28/10/2005).
[2] O verbete viria a ser cancelado pelo mesmo órgão
jurisdicional em razão da mudança de orientação nos tribunais superiores em
24/3/2017.
TJSP, 7a Câmara de Direito Privado, Apelação
9129988-09.2009.8.26.0000, Rel. Des. Ramon Mateo Júnior, julg. em 11/12/2013.
[4] RE 432.106/RJ, Rel. Min. Marco Aurélio, julg. em
20/9/2011: “Associação de moradores – Mensalidade – Ausência de adesão. Por não
se confundir a associação de moradores com o condomínio disciplinado pela Lei
no 4.591/64, descabe, a pretexto de evitar vantagem sem causa, impor
mensalidade a morador ou a proprietário de imóvel que a ela não tenha aderido.
Considerações sobre o princípio da legalidade e da autonomia da manifestação de
vontade – artigo 5o, incisos II e XX, da Constituição Federal”.
[5] Embargos de divergência em Recurso Especial no
444.931/SP (2005/0084165-3), Relator: Ministro Fernando Gonçalves, RP/Acórdão:
Ministro Humberto Gomes de Barros: “Embargos de Divergência. Recurso Especial.
Associação de moradores. Taxas de manutenção do loteamento. Imposição a quem
não é associado. Impossibilidade. As taxas de manutenção criadas por associação
de moradores, não podem ser impostas a proprietário de imóvel que não é
associado, nem aderiu ao ato que instituiu o encargo”.
Artigo: Marco Aurélio
Bezerra de Melo. Desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Mestre
pela Universidade Estácio de Sá. Professor da EMERJ - Escola da Magistratura do
Rio de Janeiro.
Fonte: Flávio Tartuce, Advogado